sábado, 21 de abril de 2018

O Turista no Espelho, por Lourival Belém

As vezes as pessoas estão fora da nossa história: era este o caso de Lourival Belém
As vezes elas entram na nossa história: é este o caso de Lourival Belém

Eu já havia lido alguma coisa sobre ele, talvez o tenha visto no FestCine Goiania, realizado no segundo semestre do ano passado, no Cine Ouro,  espaço do Estado, não sei ao certo se município ou província de GO, quer dizer, Rio Meia Ponte

No entanto nesta noite, após a exibição do seu filme, ele Lourival entrou na história do SPIN e, ainda mais, por termos sido amigos comuns de Deusdete do Carmo Martins, uma espécie de Mãe Preta para o movimento anti-manicomial...

Me chamou a atenção quando o spin cineasta afirmou que estava para baixo, feito anjo caído, quando se encheu de conatus ao entrar em contato com as nações indígenas.

Agora sei: ele estava oculto para mim porque não estava individuado e sim num enxame, num monturo, numa assemblage onde o indivíduo perde força presença.


Segue artigo sobre a obra do cineasta:

Em caráter de pré-estreia, “O Turista no Espelho” tem exibição na mostra “O Amor, a Morte e as Paixões” dentro da mini-mostra em comemoração aos 40 anos do Cineclube Antônio das Mortes

Imagens que se fundem para mostrar uma terra triste e devastada lembram elementos de “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum, citado no filme, amarrando o sentido semântico de sua narrativa | Foto: Guaralice Paulista
Leitor de Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha, membro atuante do Coletivo Liberdade, funcionário público com o cargo de médico psiquiatra, que defende diuturnamente minorias como moradores de rua, ciganos, comunidades quilombolas, indígenas, Lourival Belém Jr também é cineasta premiado, diretor e roteirista de documentários importantes na cinematografia goiana de curtas-metragens.

Seus documentários, como “As Cidadelas Invisíveis” (Prêmio FICA 2001), “Imagens da Cidade dos Ho­mens” e “Concerto da Cidade” (prêmios Goiânia Mostra Curta e FICA 2005), imprimem uma beleza que vem da apuração estética e uma tensão política permanente, mesmo quando o conteúdo narrativo seja uma mulher dançando balé em torno de cuidadores e internos de um manicômio (“Quinta Essência”), uma “casa de loucos”, minoria que ele defende – no cerne de sua ocupação profissional – das grades e dos medicamentos excessivos.
Este ano, Belém Jr lançou o curta “O Turista no Espelho” (26 minutos), de uma força poética que só poderia vir de alguém com seu olhar. O filme nasceu das viagens do cineasta para o Norte do País, quando filmou ribeirinhos amazonenses e indígenas, criando uma polifonia com imagens de protestos e notícias de jornais das cidades grandes, dialogando com o cinema e a literatura.

A identificação da tristeza do indígena e dos mestiços nos close-ups e nas fotografias é dramática, como desta mulher, em uma dança para turistas | Foto: Guaralice Paulista
Imagens
O título do filme já traz uma carga significativa da intenção do diretor, que filmou com câmera amadora, deixando claro na abertura a proposta de seu novo trabalho. É turista pela visita a outro território linguístico, pelo passeio não profissional às terras indígenas, a outro universo semântico, a um mundo ao mesmo tempo dentro e fora de nossa mancha cultural.
Está no espelho porque há um reflexo da cultura indígena nele, que pensa essas questões, e em todos nós brasileiros, filhos da miscigenação. A imagem captada em movimento refletida no horizonte das identidades dialoga com “O Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade, com a diferença de que um turista aprendiz se afunda no espaço do outro para aprender, enquanto a proposta do título e da narrativa do filme de Belém Jr é que o turista no espelho visita o outro para se reconhecer nele.
Em um texto publicado no jornal “O Popular” de 6 de fevereiro de 2015, Belém Jr descreve seu primeiro contato com os indígenas do Mato Grosso, e num lance de reflexão coloca-se ao mesmo tempo como parente próximo deles e estrangeiro. Parente, pelo DNA que carrega com um terço de seu sangue – ou seja, um terço do sangue de todos nós brasileiros (à exceção da elite mainstream, que nunca se misturou, ou pretende não tê-lo feito) – vindo das mulheres indígenas, segundo o dossiê “Somos Todos Índios – A Saga de um Povo Desconhecido”, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, de abril de 2013.
Parente, pelas conversas com seus avós, pelos estudos históricos que sempre norteou seu embasamento discursivo. Estrangeiro, porque, na ocasião do encontro com os indígenas mato-grossenses, ele era novato na imersão do mundo in loco deles, e não tinha o cabedal linguístico e de costumes para se sentir à vontade na roda de conversas. O mergulho que deu origem ao documentário é uma espécie de resposta a essas questões.
Ele aparece nas filmagens junto com sua mulher, Guaralice Paulista, pioneira em fotografia de still cinematográfico em Goiás. Neste sentido, Belém Jr é objeto e sujeito de seu próprio filme. “O Turista no Espelho” também tem um bom trabalho de edição. Imagens que se fundem para mostrar uma terra triste e devastada lembram as paisagens exteriores de “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum, cuja citação, não por acaso, amarra o sentido semântico da narrativa de “O Turista”.
Narrativas
Em algumas ocasiões, as imagens pedem legendas que não existem, para mostrar por exemplo o local exato das filmagens. Mas esse silêncio parece levar o espectador para outro patamar de interpretação, obriga-o a construir sua própria narrativa, seu próprio entendimento do que é o Brasil, e assim dialogar com a narrativa do filme. Este é o espelho interno.
O outro espelho, também de grande valor reflexivo, é o do título, do turista, que acaba sendo o espelho macro, porque todos querem ser apenas turistas nessa terra vasta e devastada chamada Brasil.
Daí fazer muito sentido a inserção das cenas com Paulo César Pereio no filme “Iracema – Uma Transa Amazônica”, de 1975, em que o ator faz o papel de um caminhoneiro que volta do Pará para o Rio de Janeiro com uma moça indígena. A jovem indígena quer ser branca, porque para ela ser brasileiro é ser branco. Ela reivindica a cidadania brasileira pela cor de seu colonizador, que não dá a mínima para sua gente, em uma espécie de espelho invertido.
Há momentos de tensão rítmica, logo, estética, na troca de imagens, entre mato, rio, pessoas, en­quanto o turista adentra o lugar do índio. Já a identificação da tristeza do indígena e dos mestiços nos close-ups, e nas fotografias, é dramática, como a mulher de um deles, visivelmente acabrunhada, ao ensaiar uma dança para os turistas, o que faz lembrar por um momento “Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss, outro diálogo possível.
Passados os 26 minutos, fica a percepção de que a confluência das imagens de grupos marginalizados como negros, indígenas e mestiços entressurgindo no vídeo – e a natureza em frangalhos, pegando fogo, sendo desmatada –, acompanhadas de três ou quatro linhas de “Cinzas do Norte”, constrói uma bela tessitura dramática e dá ao filme o caráter de identidade de um povo à margem. l

Serviço

l Filme: “O Turista no Espelho” (26′)
l Mostra: O Amor, a Morte e as Paixões (Cineclube Antônio das Mortes – 40 anos)
l Local: Cine Lumière Bougainville
l Ingresso: R$ 15,00
Sessão
l 13/02/18 – Terça-feira
l Sala 3 – às 17:00

Nenhum comentário:

Postar um comentário