sábado, 21 de abril de 2018

Lourival Belém, spin cineasta, por Giba

O olhar que esquadrinha as paisagens, por Giba


Foto- Michel Capel

Lourival Belém Jr., médico e documentarista goiano, entre a arte a cidade


Quem ama a cidade deixa-a morar por inteiro em sua alma, sem execrá-la por ser cruel e célere, vulgar e altiva, por ser bela, mas carregada de pequenos horrores. Não a nega por ser o lugar plural e volúvel, que num átimo muda as cores, os cheiros e as vias de acesso, esquecendo o primeiro afeto para beijar o outro que chega de repente.

Quem ama a cidade, vive-a, e a observa com uma espécie de desejo e repulsa que só a arte é capaz de traduzir. Em Goiânia há um homem assim, fascinado pelos signos das ruas, senhor de uma lente crivosa que tudo ama como quem se espanta, e olha para a capital goiana, onde nasceu, cresceu e se formou, com a mesma intensidade humana que usa para exercer sua profissão, a medicina.


Lourival Belém Jr. (52 anos), casado, pai de um casal de filhos já adultos, é médico psiquiatra, e, como médico, trabalha feito um louco, visionariamente, em seu consultório no setor Oeste, mas também nas ruas de Goiânia e nos presídios, dando pareceres psiquiátricos, ou orientando projetos ligados à rede de tratamentos alternativos, os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

Quando não está observando o outro dentro do consultório, observa-o dentro da cidade. E aí, o espaço se redimensiona, e também é onde podemos ver a verdade translúcida de si mesmo. Ele não deixa o médico, por não ter dupla personalidade. Não vem de Stevenson. O que faz é tornar dominante o lado cineasta, cujas lentes já captaram muitas cenas de alcance estético impressionante.

Em sua obra cinematográfica, incompleta ainda, pois Belém está em plena atividade, há uma série de documentários de curta-metragem que abordam os dramas sócio-ambientais de Goiânia. No escopo de seu cinema, pelo aspecto documental, ele questiona e informa, cria um campo de batalha com o status quo.

Mas a maior riqueza do cinema de Belém está na linguagem e na capacidade de criar graus de beleza que podem ser decantados segundo o entendimento de cada um. Isso é visto em todos os seus filmes, como em Recordações de um presídio de meninos, o mais recente, de 2009, e Autonomia, de 2006.

O primeiro é uma ficção documentária cujo título já denuncia a diretriz do drama. O segundo, de 2006, retrata, numa linguagem experimental, a luta diária de marginalizados e educadores, uns para legitimar socialmente a vida que têm, outros, para terem aceita socialmente a vida que levam.

Os documentários mais interessantes de Belém, no entanto, são aqueles que trazem no título a palavra que lhe é cara, cidade: As cidadelas invisíveis, de 2001, premiado com o FICA daquele ano e com o Goiânia Mostra Curta; Concerto da cidade (2005), que também ganhou o FICA; e Imagens da cidade dos homens.

São todos trabalhos em que os espaços são multivalorizados e o cineasta recria as simbioses urbanas, o confronto, e o conflito, entre o homem e o meio social, o meio ambiente e o cotidiano das transformações. Belém pensa a cidade pela lógica da convivência, ao mesmo tempo que nos mostra o estrago causado pela exclusão.

Concerto da cidade, por exemplo, é sobre o desconserto do mundo. Ele parte da aniquilação das árvores no centro de Goiânia, na avenida Paranaíba, para a instalação do Mercado Aberto, o rearranjo de camelôs que ocupavam os canteiros das avenidas Goiás e Anhanguera.

As cenas se articulam internamente sob o ronco dos motosserras, o ruído do trânsito, as vozes das pessoas e o som dos instrumentos musicais. Tudo vai se comunicando, desconstruindo um sentido para recriar outro. A música, a vida, a dança, um balé de singelezas no meio da fúria e das intersecções, acompanham o espaço sendo modificado, seguem os membros desconjuntados das árvores caindo na avenida.

Em As cidadelas invisíveis, ele questiona a repressão psiquiátrica, o discurso excludente da medicina e do poder, a tendência à segregação de quem manda na cidade. Nesse filme, Belém procura explorar o controle dos espaços urbanos e a maneira como isso ressoa na subjetividade, dando voz aos excluídos também.

Talvez Imagens da cidade dos homens seja seu filme mais visto, e é o que concentra o maior grau de beleza. Polifônico, traz a marca das diversas mídias, do jornal ao rádio, e das diversas artes, da literatura ao próprio cinema. É como se quisesse recuperar a cidade, o valor da arquitetura, com o olhar.

A ironia e o jogo de metáforas também são bastante expressivos neste filme de 19 minutos. Há um texto soberbo mostrando uma paisagem carcomida em determinados trechos da cidade e sua reconstrução, de outro modo, em outra geografia. Na metade da película, há uma cena aérea que resume o olhar de Belém.

Nessa cena, Goiânia é flagrada do alto no marco zero, captando o desenho da cidade que lembra um olho, uma íris. Imagens da cidade dos homens é o filme-síntese de Belém. É o reflexo de sua própria alma, plural. É um olhar que esquadrinha as diversas paisagens sociais. É um belo exemplo de que podemos escolher o foco de nossa visão, seja ela estética, política, social, ambiental.

(Gilberto G. Pereira. Publicado na revista do Festival Internacional de Cinema Ambiental – FICA, julho de 2011)

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