Uma edição eficiente, roteiro ousado e milhares de imagens de arquivo fizeram Marcelo Masagão recontar histórias há muito esquecidas
Na era das redes sociais, produzimos initerruptamente imagens e conteúdos que ilustram nosso dia a dia. Se muito dessas fotografias passam despercebidas por nós, o que dizer das imagens arquivadas dos tempos remotos? O diretor Marcelo Masagão, atualmente responsável pelo Festival do Minuto, decidiu trazer os registros originais de homens e mulheres do século XX com o filme Nós que aqui estamos, por vós esperamos (1998), um primoroso trabalho de montagem que resgata toda a atmosfera daquele tempo.
Uma história que não cabe num CD-ROM
Uma bolsa de estudo foi o que impulsionou Marcelo Masagão a sua busca para compreender um século peculiar da história humana. A Fundação MacArthur proporcionou o recurso necessário para produzir um CD-ROM com fotografias digitalizadas daquela época.
Porém, ao fazer um curso com o historiador Nicolau Sevcenko, Masagão foi apresentado a um livro que nortearia o seu projeto: A Era dos Extremos e O Breve Século 20 (1914-1991), ambos escritos por Eric Hobsbawn. Nesta última obra, o autor explica que entre as duas datas do título (que consiste o fim da belle époque ao fim até a dissolução da União Soviética) a humanidade percebia a morte como um evento banal. As duas grandes guerras mundiais reforçam esta perspectiva desoladora.
As ideias discutidas o deixavam insone e o aspirante a diretor sabia que o projeto precisava crescer. Sua esposa, a psicanalista Andrea Meneses, trouxe os fundamentos de Sigmund Freud e a pulsão de morte. O livro O Mal-Estar na Civilização foi um novo viés para abordar o tema do que iria se tornar um “filme-memória”.
Em busca das imagens de arquivo
Foram necessárias muitas imagens, entre fotografias a vídeos, para compor este longa de 70 minutos de duração. A busca foi intensa já que toda a obra não produziu nenhuma imagem original – todas são de arquivo, ou seja, foram produzidas nos anos que são retratadas. Masagão viajou para Nova York e Paris onde reproduziu os originais de filmes, fotografias e cinejornais devidamente preservados. Dentre as imagens incorporadas no longa estão as obras de ficção Viagem à Lua (Georges Méliès, 1902), Um Cão Andaluz (Luiz Buñel, 1929) e o documentário experimental Um Homem com a Câmera (Dziga Vertov, 1929).
Para realizar o filme, o diretor gastou 140 mil dólares sendo que 80 mil foram destinados a cobrir os custos dos direitos autorais. Mesmo assim, Masagão comentou em entrevista que o computador utilizado para a edição das imagens custou apenas dois mil dólares, um valor irrisório para a produção de um longa-metragem que se pauta basicamente na montagem.
O filme dispensou o voice-over (o narrador do documentário) e basicamente se guia por imagens e alguns poucos textos introduzidos durante o filme, proporcionando uma imersão dos costumes, estruturas sociais e políticas, inventos e além do horror da guerra. As imagens também são apresentadas dividindo a tela, por meio de transições, fusões e outros recursos de edição.
Um documentário peculiar
Por suas opções estéticas e narrativas, Nós que aqui estamos, por vós esperamos, chamou a atenção dos mais diversos apreciadores da sétima arte. A obra faz um apanhado histórico ao mencionar líderes e movimentos sociais dessa época, mas também provoca um exercício de imaginação ao observar as vidas de pessoas comuns.
Por meio de legendas, o diretor sugere as preferências e estilos de vida daqueles que não mais existem neste mundo. Ao falar, por exemplo, de um certo operário que torce para um time de futebol, o diretor permite imaginarmos as biografias perdidas desses anônimos que contribuíram na construção da civilização moderna. Por estes e outros motivos o filme foi extremamente aceito tanto pela crítica (por sua ousada proposta) como pelo público.
Em sua quarta edição, o Festival É Tudo Verdade, realizado no Brasil e destina-se aos filmes de não-ficção, premiou em primeiro lugar na Competição Internacional, algo bastante significativo pois o filme demonstrava fôlego competitivo. Outros prêmios conquistados foram I Grande Prêmio Brasil de Cinema, Prêmio GNT de Renovação da linguagem, 3º Festival de Cinema Nacional de Recife (como melhor filme, melhor roteiro e melhor montagem), Festival de Gramado (melhor montagem), entre outros festivais nacionais e internacionais.
Curiosamente, muitos destes festivais são voltados aos filmes de ficção, o qual o filme obteve uma penetração mais amigável do que nos festivais de documentário. A linguagem não convencional para um filme de não-ficção ou a inserção de histórias inventadas podem ser os motivos deste tipo de repercussão.
É divertido imaginar em um futuro longínquo (o inalcançável século XXII), em que algo parecido aconteceria em relação à nossa era digital: historiadores e cineastas vasculhariam as imagens produzidas pelas redes sociais, montando-as de tal forma que se encontria uma nova maneira para se contar a história da civilização humana.
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http://www.setcenas.com.br/jornal-tempo/o-filme-memoria-de-marcelo-masagao/
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